quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

A bola no meio, iluminada pelo Sol, como o ator principal é iluminado por suas luzes em seu palco.Rodeada por bailarinos que a conduzem para o gol: três balizas que juntas unindo-se ao chão são a porta para o orgasmo, ouvem-se gritos de prazer quando ela, a bola,atravessa essas três traves que se unem ao chão.
De um lado da bola, um menino.Um menino só,um menino triste.Um menino que mora num apartamento da zona sul,que pela sua janela assiste ao Corcovado e às crianças de sua idade que o excluem.Um menino isolado na escola, sem palavras, sem amigos e olhado só por desdém.
Esse menino é meio gordinho,têm sardas e cabelos ruivos,usa aparelho e uma voz que poucos escutam.É tímido, é fanho,é dito como feio.Horrendo,segundo as meninas do colégio.Foi batizado como Marcelo há uns treze anos atrás, mas quase ninguém o chama assim.Gordinho, cabeça-de-bagre, chupa-cabra são alguns dos adjetivos que passam por substantivos para chamá-lo.Ouve calado.
Uma vez ou outra, uma lágrima escorre pelo seu rosto, seja no quarto,em sua casa, ou no pátio da escola, onde passa trinta minutos sentado num banco, comendo seu lanche e vendo os outros brincarem, de segunda a sexta-feira .Quando essa lágrima escorre, ninguém percebe.
Sua mãe trabalha fora, dá pouca atenção a ele, foi criado por babás que também sempre foram hostis em seu trato com esse menino chamado Marcelo.Seu pai?Desse ele tem curiosidade, queria saber se usa barba ou não, qual é a cor de seu cabelo, de seus olhos, queria saber se é bonito.Só sabe que ele é presente uma vez por mês, com uma boa quantia na conta bancária da mãe.
Chuta uma bola de meia vermelha e preta em direção às paredes de casa: entre a estante de televisão e a do computador; entre a prateleiras de livros e a mesinha de som.De vez enquanto sai em busca de campos, onde ele joga quando é o par, campos onde ele não tem face.
Do outro lado da bola está um outro menino.Esse não é triste , é revoltado.Não é só porque no barraco onde reside, divide espaço com cinco irmãos mais novos, poucos desses irmãos têm o mesmo pai.De um buraco na parede do cômodo onde dorme, também vê os braços do Cristo Redentor, que nunca o abraçou.É analfabeto, nunca foi à escola.
É um menino de quinze anos, o chamam de Pagú.Seus dentes brancos raramente são expostos, é magro porém forte, alto e negro.Pés cortados, sempre descalços deslizam pelo asfalto da cidade.Mãos estendidas para esmola,mãos que jogam limões para o alto no sinal vermelho, mãos que engraxam sapatos pretos.Preto como ele .É um menino de quinze anos, um menino que sustenta a sua casa e os seus cinco irmãos.Menino de olhos negros como carvão.Olhos que viram a sua irmã, estuprada, ser seqüestrada por traficantes, olhos que viram seu pai ser morto a calibre 38 por policiais sem saber a razão.Ele não sabe a razão, seu pai não soube a razão e os policiais não tiveram razão.
Num dia de ódio, roubou um walk-man, e é nele que ouve funk pelas ruas da cidade.Tem uma cicatriz no braço direito,braço que um dia carregou a mãe,tendo uma crise asmática, para um hospital público.Olhos que viram a mãe pela ultima vez, por incompetência médica.
Gosta de jogar bola quando a encontra rolando por algum lugar.Como nesse dia que a viu no Aterro, em Botafogo, ou em algum canto do subúrbio.
A bola quase parada, iluminada pelo sol, em algum canto do Rio, sendo dividida por esses dois meninos.A bola, musa dos brasileiros. A bola, instrumento de catarse.Uma bola perdendo o couro, deslascada, sendo dividida por dois universos diferentes.A bola simbiótica, unindo dois universos diferentes.
E na mente desses dois meninos só se pensava “Essa bola é minha”.O que aconteceu antes não importa, é passado, é história.