sexta-feira, 25 de setembro de 2015

último gole de cerveja

...a noite foi legal. Música boa, bebida de qualidade, pessoas interessantes,papos leves, enfim, tava satisfeito. Já tá quase amanhecendo, hora de voltar. Física quântica é complicado, neurocirurgia também, assim como encaçapar todas as bolas num joguinho de sinuca em uma tacada só. Mas dificuldade mesmo, temos em dizer "Já deu pra mim, foi legal, mas tá na hora de partir."
  Com um gostinho de quero mais, o trajeto foi trôpego pela calçada na direção do ponto. Havia uma tiazinha vendendo cerveja no meio do caminho e no meio do caminho parei. A marca não convém falar, pode influenciar pelo rótulo. Mas o conteúdo, querido, querida, veio como uma boa forma de oração, trouxe a paz eterna. Diálogo com o Todo-Poderoso, amém. É foda. Cerveja gostosa, gelada, mata aquela sede que nem sabia que tinha, desce doce, aveludando o esôfago, flertando com o paladar.Espuma nos lábios. Cada gole era uma sedução festiva de todas as papilas gustativas. Ouvi dizer que rola uma divisão entre o doce, o salgado e o azedo, né? Todos entraram no balaio, ali não rolava fronteiras. Deus, a cerveja tava gostosa! Leve, refrescando a alma. Colocou no tom certo tudo aquilo que parecia errado, idéias pessoais/profissionais/sociais/econômicas foram brotando, florindo "Porque complicamos tanto tudo? Viver é uma delícia, nós que vivemos de dieta."
  Verdade seja dita, o terceiro gole não fluiu tão bem como no segundo e nem pense em se comparar com o primeiro. Aquilo não foi amor, mas uma paixão avassaladora! De qualquer forma, se alguém, naquele exato momento perguntasse: E aí, como tá a cerva? "Perfeita." seria a resposta. No quarto gole rolou um pequeno engôdo, deu uma ovalada. Mas como os momentos felizes tinham deixado raízes, continuei segurando a latinha, desajeitado, enquanto contava o dinheiro da passagem.
    No quinto gole veio o alerta" a cerveja esquentou, tá choca...". Os anjos protegem com tanto carinho os ébrios, e por isso, acreditamos tanto em milagres. "Tá quente e choca agora, mas vai voltar a ficar tão gostosa como no primeiro gole." Meus caros, sinto informa-los mas isso é muito raro de acontecer. Nunca eu não digo apenas por gratidão aos santos que me guiam na bebedeira, Baco é um querido comigo, mas é raro algo que se dissolveu voltar a sua forma original.
     No sexto gole, curto gole, veio o veredito final: Tá uma merda. Já tá me provocando azia, sensação de estufamento, cada vez que boto essa lata na boca me vem um soco na barriga. Briga constante contra o vômito, entalamento na cárdia. Mas ainda tem um restinho a mais, e por pior que esteja me fazendo essa bebida, é tão difícil largar da mão de algo que nos apaixonamos tão visceralmente.
    Sentado no meio-fio, vejo vindo  um rapaz mulato com uma enorme sacola preta, repleta de alumínios, fuxicando cada lixeira à busca de 5 centavos em forma de algumas 300 gramas metálicas. E eu, com um restinho de cerveja na lata, entro na bifurcação "Largo de um passado tão mágico que o conteúdo dessa lata me garantiu e o deixo essa superfície que ele tanto deseja ou não?" Penso no restinho que falta, no quanto estou gostando no momento, penso na produtividade que haverá se eu levar comigo e penso se, nesse momento, essa latinha não combina mais com as mãos desse moço mulato. Mas eu curti tanto ela...a cerveja. E agora só me traz uma sensação ruim, prelúdio de uma ressaca daquelas.
  Não importa, agora o ônibus tá chegando, levanto num impulso do meio-fio, faço sinal com a lata na mão, olho pro homem, gentilmente deixo a latinha em cima da calçada, entro no ônibus e viagem que segue...